segunda-feira, 15 de maio de 2017

AULA DE ETIQUETA

    O professor Benedito Costa Neto fez um texto espetacular sobre "aula de etiqueta". Generosamente, ele compartilhou a crônica com o Bora Pensar. Aproveite!

Nos jantares, eu costumo ficar quieto. “Quieto” talvez não defina minha atitude. Explico: fico na minha, de boa. Não falo de literatura, artes, nada disso. Não falo dos assuntos que domino e não falo de política, de religião. E nem poderia falar de esportes porque não entendo nada disso. Jantares não são palestras: são momentos para relaxar, beber, falar de amenidades. É muito chato quando alguém toma a palavra e faz discurso, seja lá sobre o que for, moda ou medicina, o NCPC ou a campanha do Barça.
E há aqueles assuntos tabus, doutrinadores. Nem preciso citá-los. E há ainda os que dominam as reuniões falando do cocô do filho, da separação, etc.
Dia desses eu fui convidado para um encontro de amigos. Não conhecia quase ninguém. Eu gosto dessas ocasiões. Ninguém conhecendo ninguém é uma chance para a troca. Ninguém sabe das suas qualidades e dos seus defeitos — e ainda penso haver certo encanto em descobertas. “Descobrir" as pessoas é meio como ir lendo um livro. O livro pode ser bom, médio, ruim, sensacional.
O anfitrião, muito hábil na arte da recepção, me colocou junto com dois casais. Adestrado na noite, entre taças, mesas, talheres e acepipes, ele nos introduziu: “vocês vão se dar bem porque todos aqui gostam de viajar”. Brilho nos olhos dos cinco. Possibilidades como aqueles globos de espelhinhos girando no teto da pishta.
Conversa vai, conversa vem, o primeiro comentário curioso: “não conheço a América Latina”. Bom: não só no Brasil se pensa numa América Latina espanhola, hispano-falante. Por vezes, o conceito de América Latina é a América do Sul, sem o Brasil. Noutras vezes, o Brasil fica dentro, com seus duzentos milhões de falantes e 201 línguas, com seus mais de 4.500 km de ponta a ponta, se vc fizer uma linha imaginária passando de norte a sul. Há ainda os que lembram que existe uma América Latina de fato, que inclui o México. E “latina”, em se referindo à latinidade, incluindo igualmente os lugares de outras línguas (neo)latinas, como francês, o créole, o papiamento, e tals. É uma variação linguística e cultural incrível. Pode-se supor que uma América Latina não inclua os povos de línguas do ramo anglo-saxão ou ainda os povos indígenas, centenas de línguas, centenas de culturas. A noção geográfica e geo-política das pessoas é uma coisa à parte. Meu cérebro dá uns três loops e volta para se assentar num lugar de recepção da fala alheia, assim, como quem passa geléia de damasco no queijo com mofo. Não conhecer a América Latina permite a pergunta: “de qual América Latina você fala?”.
Conversa vai, conversa vem, alguém diz que detesta viajar pelo Brasil e pela América Latina. Sabe quando algum sino toca em algum lugar anunciando o recreio ou o começo de um round? Nessas horas, vou ao banheiro. Me delongo um pouco lá. Lavo as mãos demoradamente, seco-as, e, como não uso maquiagem, não há nada a ser retocado. Sou meio careca e nem posso me dar ao luxo de arrumar o cabelo. Mas olho o nariz e as orelhas e percebo que já passou da hora de fazer limpeza de pele e de passar a máquina em alguns lugares. Senão, vou ficar parecendo um lobo. Volto. Torço para não me perguntarem se conheço a Bolívia ou a Amazônia brasileira. Infelizmente, alguém sabe que sim, que conheço. E alguém viu uma foto minha abraçando uma árvore gigante no Pará. Eu digo que gosto, que conheço quase todos os estados brasileiros e quase todos os países da América do Sul.
Um rapaz diz que detesta. Olho para o mofinho do queijo. Eu fico pensando como ele se formou ali e como é justamente ele que dá o gosto àquele queijo. E caramba! Quem será que descobriu que esse queijo harmoniza loucamente com essa geléia! E esse vinho, 100 or!
A taça está esvaziando, e minha curiosidade é maior do que minha habilidade de convívio e eu pergunto quais estados do Nordeste ele conhece. Nenhum.
A moça ao meu lado, que me passa a garrafa de vinho, pergunta a ele quais países latino-americanos ele conhece, numa tentativa de comparação (?), sei lá. A noite é longa. Precisamos encher o bucho de queijo e vinho, e o tempo de comentários. Nenhum. Ele odeia viajar pelo Nordeste/Norte e odeia viajar por países latino-americanos, mas nunca foi.
Sim, há uma brincadeira acomodada no interior da língua: “eu não conheço, mas não gosto”. A tensão se encontra na conjunção adversativa. Claro. Um recurso linguístico que permite a ironia. Ironias são legais. Há uma tradição longa delas. Há uma tradição longa de queijos também. Volta e meia alguém descobre alguma função nova para queijos e para ironias.
Há um silêncio, talvez indicando a passagem de um anjo, talvez a fagulha de uma perplexidade. Mas alguém precisa salvar a noite, e rimos. O casal emenda falar de suas viagens. A moça que me passou o vinho (parece bem amiga das garrafas) diz que jamais iria para os destinos escolhidos pelo outro casal: Orlando, Nova York, Miami. Talvez a Costa Rica. O rapaz que odeia a América Latina e o Nordeste fica estarrecido. Ele diz a ela que, como ela nunca foi a Miami, não pode dizer. Ela responde: “então, vc nunca foi ao Peru ou à Bahia; como pode ser tão categórico?” Ele diz que é diferente, porque o Brasil e o Peru não são os EUA. Alguém comenta “por isso mesmo!”. Ouve-se um “não dá para comparar” e outro “os prédios déco de Miami são fake!”.
De repente o grupo que ia tão bem parece um macramê de ponto errado. Precisamos desmanchar uma parte e voltar a passar os fios por cima e por baixo de uma linha-base para os nós se formarem com perfeição. Eu tenho várias saídas para essas horas. Falar de cães é batata. Começo pelo Pedro. Meu cachorro me salva sempre, grande amigo. Melhor que vinhos, afinal “in vino veritas”.

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